domingo, 14 de agosto de 2011

O Hospital — Da espiritualidade à Pratica Empresarial (Final)

Por Roy Porter — Blood and Guts: The Hospital

Leper Hospital at St Mary Magdalen in Winchester

Nas grandes cidades, os hospitais converteram-se em traços fixos e conspícuos. No século VII, alguns hospitais de Constantinopla (então capital do que restava do Império Romano) tinham alas separadas para homens e mulheres e salas especiais para casos cirúrgicos e oculares. O islamismo tinha uma visão semelhante sobre a caridade devota e, a partir do século X, houve hospitais multifuncionais (“bimaristas”) no Cairo, em Bagdá, em Damasco e em outras cidades muçulmanas. Alguns deles passaram a ser usados no ensino da medicina.

Para conter uma doença assustadora, construíram-se asilos especiais para leprosos, nos quais os “impuros” podiam ser confinados à força. Em 1225, havia quase 19.000 desses leprosários na Europa. À medida que a lepra diminuiu, eles foram sendo requisitados para pessoas suspeitas de ser portadoras de doenças infecciosas, para os loucos e até para indigentes. Quando a peste bubônica atacou, no século XIV, os leprosários também foram transformados nos primeiros hospitais para isolamento de casos da peste. Começaram a criar-se lazaretos de quarentena (assim chamados em homenagem a seu santo padroeiro, São Lázaro), para salvaguardar o comércio e proteger as populações citadinas. A primeira dessas casas da pestilência foi construída em Ragusa (a moderna Dubrovnik) em 1377, enquanto Veneza impôs a quarentena em lazarentos a partir de 1423.

Em Veneza, Bolonha, Florença, Nápoles, Roma e outras grandes cidades italianas, os hospitais viriam a assumir um papel fundamental na assistência aos pobres, aos velhos e aos enfermos. No século XV, havia 33 deles somente em Florença — um para cada mil habitantes. Sete dedicavam-se principalmente aos doentes, com equipes médicas designadas. Em Londres, o São Bartolomeu data de 1123, e o São Tomás, de aproximadamente 1215. No fim do século XIV, havia quase 500 hospitais na Inglaterra, embora, fora da capital e de algumas outras cidades, em geral eles fossem minúsculos.

A dissolução dos mosteiros e capelas durante as Reformas henriquinas e eduardianas (1536-1553) a carretou o fechamento de praticamente todas essas fundações, à medida que a coroa lhes foi tomando as terras e os bens. Um punhado delas se restabeleceu, porém, em novas bases seculares, inclusive os hospitais de São Bartolomeu e São Tomás, bem como o de Belém (Bedlam), único asilo de loucos da Inglaterra. Fora de Londres, não havia nenhum hospital médico na Grã-Bretanha ainda em 1700.

Hôtel Dieu

Nos países católicos e na Alemanha protestante, não ocorreu nenhum confisco de bens no estilo henriquino e, na Espanha, França e Itália renascentista, as fundações continuaram a aumentar em número, tamanho, riqueza e poder. O Hôtel Dieu, em Paris, era uma imensa instituição de tratamento, dirigida por ordens religiosas até a Revolução Francesa. Em toda a França, o hôpital général (semelhante ao asilo de pobres, inglês) despontou no século XVII como uma instituição destinada a abrigar e confinar mendigos, órfãos, vagabundos, prostitutas e ladrões, ao lado dos doentes e dos loucos pobres. Atendiam-se as necessidades médicas básicas.

A construção de hospitais podia torna-se um projeto prestigioso. A jóia dos hospitais do continente europeu era o Allgemeine Krankenhaus (hospital geral) de Viena, como seus 2.000 leitos, reconstruído pelo imperador José II em 1784, numa expressão patente do impulso de centralização administrativa dos governantes absolutistas esclarecidos. Semelhante em seus objetivos, o Charité de Berlim foi reconstruído em 1768 por Frederico, o Grande, enquanto, em São Petersburgo, Catarina, a Grande, mandou erigir o imenso Hospital Obutchov.

Middlesex Hospital — Interiror da Enfermaria (1808)

Para preencher uma lacuna que se alargava, fundaram-se novos hospitais para os pobres dignos na Grã-Bretanha do século XVIII. A Coroa e o parlamento não tiveram nenhum papel nisso — o zelo organizador e as verbas vieram dos impulsos caritativos do públicos rico em geral. A capital foi a primeira a se beneficiar. Às duas fundações medievais da metrópole foram acrescentados cinco hospitais gerais: o Westminster (1720), o Guy’s (1724), o Londres (1740) e o Middlesex (1745). Em 1800, os hospitais londrinos lidavam com mais de 20.000 pacientes por ano.

A Real Enfermaria de Edimburgo foi instalada em 1729. seguida por hospitais em Winchester e Bristol (1737), York (1740), Exeter (1741), Bath (1742), Northampton (1743) e numas vinte outras cidades provinciais. Em 1800, toda cidade de porte tinha seu hospital: a Inglaterra se havia equiparado ao resto da Europa Ocidental. Avanços similares ocorreram, embora um pouco depois, na América do Norte. O primeiro hospital geral foi fundado na Filadélfia, no Estado da Pensilvânia, em 1751; uns vinte anos depois, criou-se o Hospital de Nova York, enquanto o Hospital Geral de Massachusetts veio em 1811, para cuidar de doentes pobres. No início do século XX, a América possuía mais de 4.000 hospitais e poucas eram as cidades que não os tinham.

Para complementar os hospitais gerais, também se fundaram instituições especializadas. O Hospital Lock, em Londres, exclusivamente para doenças venéreas, foi inaugurado em 1746. Outra instituição antes inédita foi a casa de parto, ou maternidade, As primeiras de Londres foram erigidas mais ou menos em meados do século XVIII. Algumas aceitavam mães solteiras e ofereciam instrução e prática a alunos de medicina.

Asylum 18th

Outra novidade que ganhou impulso a partir do século XVIII foi o hospício, mais tarde conhecido como manicômio, asilo de loucos ou hospitais psiquiátricos. A maioria das nações criou uma economia mista de asilos públicos e privados, religiosos e seculares, beneficentes e com fins lucrativos. Os mais esclarecidos eram uma expressão da convicção psiquiátrica de que o recolhimento a uma instituição bem projetada era decididamente terapêutico, embora alguns tenham sempre funcionado como meros lugares convenientes para encerrar pessoas inconvenientes. À medida que os procedimentos legais de interdição se desenvolveram no século XIX, esses manicômios tornaram-se cada vez maiores e ficaram abarrotados de casos sem esperança. Antes do movimento de desinstitucionalização da década de 1960, havia cerca de meio milhão de pessoas trancafiadas nos hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos e cerca de 150.000 no Reino Unido.

domingo, 7 de agosto de 2011

O Hospital — Da espiritualidade à Pratica Empresarial (Parte I)

Por Roy Porter — Blood and Guts: The Hospital

Asclepius

 

Talvez pareça estranho enunciar, como primeiríssimo requisito de um hospital, o principio de que ele não deve causar danos.

— Florence Nightingale

 

 

 

     O hospital de hoje está para a medicina assim como a catedral está para a religião e o palácio para a monarquia. É o coração da empresa; o local em que a medicina é praticada no que ela tem de mais avançado, especializado, inovador, complexo — e caro! No mundo desenvolvido, os hospitais ficam com a fatia do leão do orçamento de saúde. E são as instituições a respeito das quais se travam as batalhas da politica médica e da economia: os hospitais estão sempre no noticiário.

     Mas, embora o hospital de alta tecnologia seja a jóia da coroa, nem sempre foi assim. A principio, a medicina se arranjou inteiramente sem hospitais e, durante muito tempo, eles foram marginalizados — a rigor, muita gente era cética em relação a seu valor.

     A Grécia clássica não tinha hospitais. Os doentes podiam visitar santuários de cura, mas essas curas religiosas foram descartadas pelo novo estilo de medicina secular promovido pelos médicos hipocráticos. A Roma imperial, por sua vez, oferecia algumas instalações hospitalares, mas apenas para escravos e soldados. Foi com a era cristã que se começaram a dedicar instituições ao tratamento dos civis enfermos.

pedras_angulares_cura_cego_gf

     E isso não se deu por acaso, pois a santidade e a cura caminham de mãos dadas. Cristo havia realizado milagres de cura, restituindo a visão a cegos e fazendo aleijados andarem, e a caridade era suprema virtude cristã — basta observarmos a parábola do Bom Samaritano. Como expressões da caridade, da compaixão e da assistência cristãs, os ideais da enfermagem e da cura deram impulso à fundação de hospitais. Após a conversão do imperador Constantino, logo no início do século IV, surgiram hospitais como fundações devotas, em geral ligadas a ordens religiosas que se dedicavam a servir a Deus e aos homens.

     Durante os séculos medievais, criaram-se milhares deles, através de doações de fiéis e sob a égide de monges, freiras e outros membros de ordens religiosas. Esses hospitais costumavam ter curta duração e, tipicamente, eram modestos, talvez possuindo uma dezena de leitos e dois irmãos encarregados do atendimento, e se organizavam em torno dos ofícios religiosos. Era mais importante garantir que os cristãos morressem em estado de graça, depois de se confessarem e receberem os sacramentos, do que tentar heróicos tratamentos médicos. Embora abrigassem doentes e necessitados, em geral os hospitais não eram centros de medicina especializada: mais se pareciam com asilos, ou seja, lugares que ofereciam refúgio e proteção.