domingo, 14 de agosto de 2011

O Hospital — Da espiritualidade à Pratica Empresarial (Final)

Por Roy Porter — Blood and Guts: The Hospital

Leper Hospital at St Mary Magdalen in Winchester

Nas grandes cidades, os hospitais converteram-se em traços fixos e conspícuos. No século VII, alguns hospitais de Constantinopla (então capital do que restava do Império Romano) tinham alas separadas para homens e mulheres e salas especiais para casos cirúrgicos e oculares. O islamismo tinha uma visão semelhante sobre a caridade devota e, a partir do século X, houve hospitais multifuncionais (“bimaristas”) no Cairo, em Bagdá, em Damasco e em outras cidades muçulmanas. Alguns deles passaram a ser usados no ensino da medicina.

Para conter uma doença assustadora, construíram-se asilos especiais para leprosos, nos quais os “impuros” podiam ser confinados à força. Em 1225, havia quase 19.000 desses leprosários na Europa. À medida que a lepra diminuiu, eles foram sendo requisitados para pessoas suspeitas de ser portadoras de doenças infecciosas, para os loucos e até para indigentes. Quando a peste bubônica atacou, no século XIV, os leprosários também foram transformados nos primeiros hospitais para isolamento de casos da peste. Começaram a criar-se lazaretos de quarentena (assim chamados em homenagem a seu santo padroeiro, São Lázaro), para salvaguardar o comércio e proteger as populações citadinas. A primeira dessas casas da pestilência foi construída em Ragusa (a moderna Dubrovnik) em 1377, enquanto Veneza impôs a quarentena em lazarentos a partir de 1423.

Em Veneza, Bolonha, Florença, Nápoles, Roma e outras grandes cidades italianas, os hospitais viriam a assumir um papel fundamental na assistência aos pobres, aos velhos e aos enfermos. No século XV, havia 33 deles somente em Florença — um para cada mil habitantes. Sete dedicavam-se principalmente aos doentes, com equipes médicas designadas. Em Londres, o São Bartolomeu data de 1123, e o São Tomás, de aproximadamente 1215. No fim do século XIV, havia quase 500 hospitais na Inglaterra, embora, fora da capital e de algumas outras cidades, em geral eles fossem minúsculos.

A dissolução dos mosteiros e capelas durante as Reformas henriquinas e eduardianas (1536-1553) a carretou o fechamento de praticamente todas essas fundações, à medida que a coroa lhes foi tomando as terras e os bens. Um punhado delas se restabeleceu, porém, em novas bases seculares, inclusive os hospitais de São Bartolomeu e São Tomás, bem como o de Belém (Bedlam), único asilo de loucos da Inglaterra. Fora de Londres, não havia nenhum hospital médico na Grã-Bretanha ainda em 1700.

Hôtel Dieu

Nos países católicos e na Alemanha protestante, não ocorreu nenhum confisco de bens no estilo henriquino e, na Espanha, França e Itália renascentista, as fundações continuaram a aumentar em número, tamanho, riqueza e poder. O Hôtel Dieu, em Paris, era uma imensa instituição de tratamento, dirigida por ordens religiosas até a Revolução Francesa. Em toda a França, o hôpital général (semelhante ao asilo de pobres, inglês) despontou no século XVII como uma instituição destinada a abrigar e confinar mendigos, órfãos, vagabundos, prostitutas e ladrões, ao lado dos doentes e dos loucos pobres. Atendiam-se as necessidades médicas básicas.

A construção de hospitais podia torna-se um projeto prestigioso. A jóia dos hospitais do continente europeu era o Allgemeine Krankenhaus (hospital geral) de Viena, como seus 2.000 leitos, reconstruído pelo imperador José II em 1784, numa expressão patente do impulso de centralização administrativa dos governantes absolutistas esclarecidos. Semelhante em seus objetivos, o Charité de Berlim foi reconstruído em 1768 por Frederico, o Grande, enquanto, em São Petersburgo, Catarina, a Grande, mandou erigir o imenso Hospital Obutchov.

Middlesex Hospital — Interiror da Enfermaria (1808)

Para preencher uma lacuna que se alargava, fundaram-se novos hospitais para os pobres dignos na Grã-Bretanha do século XVIII. A Coroa e o parlamento não tiveram nenhum papel nisso — o zelo organizador e as verbas vieram dos impulsos caritativos do públicos rico em geral. A capital foi a primeira a se beneficiar. Às duas fundações medievais da metrópole foram acrescentados cinco hospitais gerais: o Westminster (1720), o Guy’s (1724), o Londres (1740) e o Middlesex (1745). Em 1800, os hospitais londrinos lidavam com mais de 20.000 pacientes por ano.

A Real Enfermaria de Edimburgo foi instalada em 1729. seguida por hospitais em Winchester e Bristol (1737), York (1740), Exeter (1741), Bath (1742), Northampton (1743) e numas vinte outras cidades provinciais. Em 1800, toda cidade de porte tinha seu hospital: a Inglaterra se havia equiparado ao resto da Europa Ocidental. Avanços similares ocorreram, embora um pouco depois, na América do Norte. O primeiro hospital geral foi fundado na Filadélfia, no Estado da Pensilvânia, em 1751; uns vinte anos depois, criou-se o Hospital de Nova York, enquanto o Hospital Geral de Massachusetts veio em 1811, para cuidar de doentes pobres. No início do século XX, a América possuía mais de 4.000 hospitais e poucas eram as cidades que não os tinham.

Para complementar os hospitais gerais, também se fundaram instituições especializadas. O Hospital Lock, em Londres, exclusivamente para doenças venéreas, foi inaugurado em 1746. Outra instituição antes inédita foi a casa de parto, ou maternidade, As primeiras de Londres foram erigidas mais ou menos em meados do século XVIII. Algumas aceitavam mães solteiras e ofereciam instrução e prática a alunos de medicina.

Asylum 18th

Outra novidade que ganhou impulso a partir do século XVIII foi o hospício, mais tarde conhecido como manicômio, asilo de loucos ou hospitais psiquiátricos. A maioria das nações criou uma economia mista de asilos públicos e privados, religiosos e seculares, beneficentes e com fins lucrativos. Os mais esclarecidos eram uma expressão da convicção psiquiátrica de que o recolhimento a uma instituição bem projetada era decididamente terapêutico, embora alguns tenham sempre funcionado como meros lugares convenientes para encerrar pessoas inconvenientes. À medida que os procedimentos legais de interdição se desenvolveram no século XIX, esses manicômios tornaram-se cada vez maiores e ficaram abarrotados de casos sem esperança. Antes do movimento de desinstitucionalização da década de 1960, havia cerca de meio milhão de pessoas trancafiadas nos hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos e cerca de 150.000 no Reino Unido.

domingo, 7 de agosto de 2011

O Hospital — Da espiritualidade à Pratica Empresarial (Parte I)

Por Roy Porter — Blood and Guts: The Hospital

Asclepius

 

Talvez pareça estranho enunciar, como primeiríssimo requisito de um hospital, o principio de que ele não deve causar danos.

— Florence Nightingale

 

 

 

     O hospital de hoje está para a medicina assim como a catedral está para a religião e o palácio para a monarquia. É o coração da empresa; o local em que a medicina é praticada no que ela tem de mais avançado, especializado, inovador, complexo — e caro! No mundo desenvolvido, os hospitais ficam com a fatia do leão do orçamento de saúde. E são as instituições a respeito das quais se travam as batalhas da politica médica e da economia: os hospitais estão sempre no noticiário.

     Mas, embora o hospital de alta tecnologia seja a jóia da coroa, nem sempre foi assim. A principio, a medicina se arranjou inteiramente sem hospitais e, durante muito tempo, eles foram marginalizados — a rigor, muita gente era cética em relação a seu valor.

     A Grécia clássica não tinha hospitais. Os doentes podiam visitar santuários de cura, mas essas curas religiosas foram descartadas pelo novo estilo de medicina secular promovido pelos médicos hipocráticos. A Roma imperial, por sua vez, oferecia algumas instalações hospitalares, mas apenas para escravos e soldados. Foi com a era cristã que se começaram a dedicar instituições ao tratamento dos civis enfermos.

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     E isso não se deu por acaso, pois a santidade e a cura caminham de mãos dadas. Cristo havia realizado milagres de cura, restituindo a visão a cegos e fazendo aleijados andarem, e a caridade era suprema virtude cristã — basta observarmos a parábola do Bom Samaritano. Como expressões da caridade, da compaixão e da assistência cristãs, os ideais da enfermagem e da cura deram impulso à fundação de hospitais. Após a conversão do imperador Constantino, logo no início do século IV, surgiram hospitais como fundações devotas, em geral ligadas a ordens religiosas que se dedicavam a servir a Deus e aos homens.

     Durante os séculos medievais, criaram-se milhares deles, através de doações de fiéis e sob a égide de monges, freiras e outros membros de ordens religiosas. Esses hospitais costumavam ter curta duração e, tipicamente, eram modestos, talvez possuindo uma dezena de leitos e dois irmãos encarregados do atendimento, e se organizavam em torno dos ofícios religiosos. Era mais importante garantir que os cristãos morressem em estado de graça, depois de se confessarem e receberem os sacramentos, do que tentar heróicos tratamentos médicos. Embora abrigassem doentes e necessitados, em geral os hospitais não eram centros de medicina especializada: mais se pareciam com asilos, ou seja, lugares que ofereciam refúgio e proteção.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Doenças — O Ser Humano Como Responsável Pelas Suas Próprias Moléstias

Por Roy Porter — Blood and Guts: Disease

Grupo de bactérias "Vibrio cholerae", causadoras da cólera.A guerra entre a doença e os médicos, travada no campo de batalha da carne, tem começo e meio, mas não tem fim. A história da medicina, em outras palavras, está longe de ser uma narrativa simples de um progresso triunfante. Como é sugerido pela história da caixa de Pandora ou pela da Queda cristã, as pragas e pestes são mais do que riscos naturais inevitáveis que, segundo esperávamos, serão superados: são predominantemente criadas pela própria humanidade. As epidemias surgiram com a sociedade, e a doença foi e continuara a ser um produto social, tanto quanto a medicina que luta contra ela. A civilização não traz apenas mal estar, mas também doenças.

Uns cinco milhões de anos atrás, dizem-nos os antropólogos, a África assistiu ao aparecimento do primeiro homem-macaco, o australopithecine, de teste estreita e mandíbula grande. Decorridos três milhões de anos, evoluiu nosso ancestral ereto e de cérebro grande, o Homo Sapiens, que aprendeu a fazer fogo, a usar utensílios de pedra, e (finalmente) a falar. Esse onívoro espalhou-se aproximadamente um milhão de anos atrás, pela Ásia e pela Europa, e uma linha direta de seus desentendes levou, por volta de 150.000 a.C., ao Homo sapiens sapiens.

Os caçadores-coletores, que foram nossos precursores no Paleolítico, atormentados por ambientes severos e perigosos, tinham a vida curta. Mesmo assim, escaparam das pestes que viriam a assolar as sociedades posteriores. Mais ou menos como os bosquímanos do Kalahari, eram nômades que viviam em grupos pequenos e dispersos. As doenças infecciosas (varíola, sarampo, gripe e similares) deviam ser praticamente desconhecidas, uma vez que os microorganismos responsáveis por elas precisam de altas densidades populacionais que lhes proporcionem reservatórios de hospedeiros susceptíveis. E esse caçadores-coletores isolados também não ficavam num mesmo lugar por tempo suficiente para poluir as fontes de água ou depositar a sujeira que atrai insetos disseminadores de doenças. Acima de tudo, eles não tinham os animais domésticos que desempenharam um papel sumamente dúbio na história humana. Embora as criaturas domesticadas tenham possibilitado a civilização, também se revelaram fontes de contínuas e amiúde devastadoras de moléstias.

À medida que os seres humanos colonizaram o globo, eles mesmos foram colonizados por agentes patogênicos. Entre estes se incluiriam vermes e insetos parasitários — helmintos, pulgas, carrapatos, e artrópodes — e também microorganismos como bactérias, vírus e protozoários, cujos índices ultra-rápidos de reprodução produzem doenças graves no hospedeiro, mas, em geral — o que é um pequeno consolo —, provocam nos sobreviventes uma certa imunidade contra a reinfecção. Esses inimigos microscópicos engalfinharam-se com os seres humanos, em luta evolutiva pela sobrevivência que se caracterizaram não pela existência final de vencedores e derrotados, mas por uma incômoda coexistência.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Uma visão da humanidade — na terra, no espaço, no tempo.

universe

The Sagan Series. Voz de Carl Sagan, baseado no livro Pálido Ponto Azul — Uma visão da humanidade no Espaço. Vídeo edição: Michael Marantz. Legendas: Bule Voador.

A Fronteira Estava em Toda a Parte

A Vida Procura por Vida

Uma Fábula Reconfortante

NASA Per Aspera Ad Astra

SETI Decida Escutar

… “A vela da ciência sempre estará próxima da mente preparada, clareando-a o bastante, distanciado-a da escuridão; iluminando-a o bastante, sem deixa-la cega”.

domingo, 3 de julho de 2011

Aberrações da Luz

Por Carl Sagan, em Pálido Ponto Azul (1994).

Foto Divulgação

     Ann Druyan sugere uma experiência: olhem de novo para o pálido ponto azul ao lado. Observem bem. Olhem fixamente para o ponto por um longo tempo e tentem se convencer de que Deus criou todo o Universo para uma das aproximadamente 10 milhões de espécies de vida que habitam este grão de poeira. Agora dêem um passo adiante: imaginem que tudo foi feito apenas para uma única nuança dessa espécie, gênero ou subdivisão religiosa ou étnica. Se isso não lhes parecer improvável, tomem outro dos pontos. Imaginem que ele é habitado por uma forma diferente de vida inteligente. Que também nutre a noção de um Deus que criou todas as coisas para o seu bem. Até que ponto vocês levariam a sério essa pretensão?

     — “Está vendo aquela estrela?”
     — “A vermelha brilhante”? — pergunta a filha em resposta.
     — “Sim. Sabe, ela talvez já não esteja ali. Poder ter desaparecido a essa altura —explodido ou algo assim. A sua luz ainda está cruzando o espaço, só agora atingindo nossos olhos. Mas não a vemos como ela é. Nós a vemos como ela foi”.

     Muitas pessoas experimentam estimulante admiração quando se vêem, pela primeira vez, diante dessa verdade simples. Por quê? Por que ela seria tão irresistível? Em nosso pequeno mundo, a luz se move, para todos os fins práticos, instantaneamente. Se uma lâmpada está acessa, é claro que se encontra brilhando onde a vemos. Estendemos a mão e a tocamos: está ali, sem dúvida alguma; e desagradavelmente quente. Se o filamento se rompe, a luz se apaga. Não a vemos no mesmo lugar, brilhando, iluminando o quarto, anos depois que se queimou e foi removida de seu suporte. A simples idéia parece sem sentido. Se estamos distantes, porém, um sol inteiro pode se apagar e continuaremos a vê-lo brilhar resplandecentemente; é bem possível que, por eras, fiquemos sem saber de sua morte — na verdade, durante o período do tempo que a luz, de velocidade assombrosa mas não infinita, leva para cruzar a imensidão intermediária.

     As imensas distâncias até as estrelas e as galáxias significam que todos os corpos que vemos no espaço estão no passado — alguns deles tal como eram antes que a Terra viesse a existir. Os telescópios são máquinas do tempo. Há muitas eras, quando uma galáxia primitiva começou a derramar luz na escuridão circundante, nenhuma testemunha poderia ter adivinhado que bilhões de anos mais tarde alguns blocos remotos de rocha e metal, gelo e moléculas orgânicas, se juntariam para formar um lugar chamado Terra; nem surgiria a vida; nem que seres pensantes evoluiriam e um dia captariam um ponto dessa luz galáctica, tentando decifrar o que a enviara em sua trajetória. E depois que a Terra morrer, daqui a uns 5 bilhões de anos, depois que ela for calcinada ou até tragada pelo Sol, surgirão outros mundos, estrelas e galáxias — e eles nada saberão de um lugar outrora chamado Terra.

     Quase nunca parece preconceito. Ao contrário, parece apropriada a justa idéia de que, por ter nascido acidentalmente, o nosso grupo (seja ele qual for) deveria ter uma posição central no universo social. Entre os principais faraônicos e os pretendentes dos Plantagenet, os filhos de barões saqueadores e os burocratas do Comitê Central; as gangues de rua e os conquistadores de nações; os membros de maiorias convictas; seitas obscuras e minorias ultrajadas; essa atitude de favorecer os seus próprios interesses, parece tão natural quanto respirar. Ele tira o seu sustento das mesmas fontes em que se alimentam o sexismo, o racismo, o nacionalismo e outros chauvinismos mortais que atormentam nossa espécie. É necessária força incomum de caráter para resistir às lisonjas dos que nos atribuem uma superioridade evidente, até concedida por Deus, sobre os nossos companheiros. Quando mais precária a nossa auto-estima, maior a nossa vulnerabilidade a esses apelos.

     Como os cientistas são pessoas, não é surpreendente que pretensões parecidas tenham se insinuado na visão científica do mundo. Na verdade, muitos dos debates centrais na história da ciência parecem ser, ao menos em parte, disputas em que se procura decidir se os seres humanos são especiais. Quase sempre, o pressuposto aceito é de que a premissa é examinada com cuidado, descobre-se — em um número desalentadoramente grande de casos — que não somos.

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     Os nossos antepassados viviam ao ar livre. Sua familiaridade com o céu noturno era igual à que temos hoje com nossos programas favoritos de televisão. O Sol, a Lua, as estrelas e os planetas, todos nasciam no leste e se punham no oeste, cruzando o alto do céu nesse meio tempo. O movimento dos corpos celestes não era simplesmente uma diversão, provocando uma saudação ou resmungo reverente — era a única maneira de reconhecer as horas do dia e as estações. Para os caçadores e colhedores, bem como para os povos agrícolas, conhecer o céu era uma questão de vida ou morte.

     Providencial que o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas fizessem parte de um relógio cósmico elegantemente configurado? Nada parecia acidental. Eles ali estavam, a nosso serviço. Quem mais fazia uso deles? Para que mais serviam?

     E as luzes no céu se levantam e se põem ao nosso redor, não é evidente que estamos no centro do Universo? Os corpos celestes — tão claramente impregnados de poderes extraterrenos, especialmente o Sol, de que dependemos tanto, pois dele dependemos tanto, pois dele recebemos luz e calor — giram ao redor de nós como cortesãos adulando o rei. Mesmo que ainda não tivéssemos adivinhado, o exame mais elementar dos céus revela que somos especiais. O Universo parece projetado para seres humanos. É difícil considerar essas circunstancias sem experimentar confiança e orgulho. Todo o Universo feito para nós! Devemos ser realmente algo especial.

     Essa demonstração satisfatória de nossa importância, escorada na observação cotidiana dos céus, transformou o conceito geocêntrico em uma verdade transcultural — ensinada nas escolas, incorporada à língua, parte integrante da grande literatura e das Escrituras Sagradas. Os dissidentes foram desencorajados, às vezes por meio de tortura e morte. Não é de admirar que, durante a maior parte da história humana, ninguém a tenha questionado.

     Era, sem dúvida, a visão de nossos antepassados caçadores e saqueadores. No segundo século, Ptolomeu, o grande astrônomo da Antigüidade, sabia que a Terra era uma esfera, sabia que seu tamanho era “um ponto” se comparado à distância das estrelas e ensinava que ela estava “bem no meio dos céus”. Aristóteles, Platão, santo Agostinho, santo Tomás de Aquino e quase todos os grandes filósofos e cientistas de todas as culturas acreditaram nessa ilusão durante 3 mil anos até o século XVII. Alguns se ocupavam em imaginar como o Sol, a Lua, as estrelas e os planetas poderiam estar engenhosamente presos a esferas cristalinas, de transparência perfeita — as grandes esferas, é claro, centradas na Terra —, o que explicaria os movimentos complexos dos corpos celestes. Tão meticulosamente relatados por gerações de astrônomos. E foram bem-sucedidos: com modificações posteriores, a hipótese geocêntrica explicava adequadamente os fatos do movimento planetário, assim como este era conhecido nos séculos II e XVI.

     Daí foi apenas um passo para reivindicação ainda mais grandiosa — a de que a “perfeição” do mundo seria incompleta sem os seres humanos, como Platão afirmou em Timeu. “O homem é tudo”, escreveu o poeta e clérigo John Donne em 1625. “Ele não é uma parte do mundo, mas o próprio mundo; e logo abaixo da glória de Deus, a razão da existência do mundo”.

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     A Terra, no entanto — não importa quantos reis, papas, filósofos, cientistas e poetas tenham insistido em afirmar o contrário — persistiu em girar em torno do Sol durante todos esses milênios. Pode-se imaginar um observador extraterrestre severo olhando a nossa espécie com desprezo durante todo o tempo, enquanto tagarelávamos animadamente: “O Universo criado pra nós! Somos o centro! Tudo nos rende homenagem! E concluído que nossas pretensões são divertidas; nossas aspirações patéticas e que este deve ser o planeta dos idiotas.

     Esse juízo é demasiado severo, porém. Fizermos o melhor possível. Havia uma coincidência infeliz entre as aparências cotidianas e nossas esperanças secretas. Tendemos a não ser especialmente críticos diante de evidências que parecem confirmar nossos preconceitos. E havia pouca evidência que os anulasse.

     Em abafado contraponto, algumas vozes dissidentes, através dos séculos, aconselhavam humildade e uma visão mais realista. Na aurora da ciência, os filósofos atomistas da Grécia e Roma antigas — que sugeriram pela primeira vez que a matéria é feita de átomos — Demócrito, Epicuro e seus discípulos (e Lucrecio, o primeiro divulgador da ciência), propuseram a escandalosamente a existência de muitos mundos e muitas formas alienígenas de vida, todos constituídos pelas mesmas espécies de átomos de que somos feitos. Apresentavam à nossa consideração infinidades no espaço e no tempo. Mas nos cânones predominantes do Ocidente, seculares e sacerdotais, pagãos e cristãos, as idéias atomistas eram atacadas. Ao contrário do que professavam, os céus não eram absolutamente parecidos com o nosso mundo. Eram inalteráveis e “perfeitos”. A Terra era mutável e “corrupta”. O estadista e filósofo romano Cícero resumiu a opinião comum: “Nos céus... não há sorte ou acaso, nem erro ou frustração, mas uma ordem absoluta, exatidão, calculo e regularidade”.

     A filosofia e a religião alertavam que os deuses (ou Deus) eram muito mais poderosos que nós, ciosos de suas prerrogativas e rápidos em dispensar justiça por qualquer arrogância intolerável. Ao mesmo tempo, essas disciplinas nem sequer suspeitavam de que seu próprio ensinamento sobre a organização do Universo era uma presunção e um engano.

     A filosofia e a religião apresentavam simples opiniões — que poderiam ser derrubadas pela observação e experimentação — com certezas. Que algumas de suas convicções profundamente arraigadas pudessem se revelar erros não era uma possibilidade considerada. Isso não as preocupava de modo algum. A humildade doutrinaria deveria ser praticada pelos outros. Os próprios ensinamentos eram isentos de erro; infalíveis. Na verdade, eles tinham mais razoes para ser humildes do que imaginavam.

     A partir de Copérnico, da metade do século XVI em diante, a questão passou a ser formalmente discutida. Era considerado perigoso imaginar que o Sol, e não a Terra, estava no centro do Universo. Condescendentemente, muitos estudiosos apressaram-se em garantir à hierarquia religiosa que essa nova hipótese não representava nenhum sério desafio à sabedoria convencional. Numa espécie de solução de compromisso esquizofrênica, o sistema centrado no Sol foi tratado como simples conveniência computacional e não como realidade astronômica. Em outras palavras: a Terra realmente não estava no centro do Universo, como todos sabiam; mas se alguém desejava predizer onde Júpiter estaria na segunda-feira de novembro do ano seguinte, era-lhe permitido “fingir” que o Sol estava no centro. Então era possível fazer o calculo sem afrontar as autoridades.

     “Não há perigo nenhum nisso”, escreveu Robert Cardinal Bellarmine, o principal teólogo do Vaticano no inicio do século XVII, “e satisfaz os matemáticos. Mas afirmar que o Sol está na verdade fixo no centro dos céus e que a Terra gira muito rapidamente ao redor dele, é perigoso, pois não só irrita os teólogos e os filósofos, como ofende a Santa Fé e torna falsa a Sagrada Escritura”.

     “A liberdade de opinião é perniciosa”, escreveu Bellarmine em outra ocasião. “Nada mais é do que a liberdade de estar errado.”

     Além disso, se a Terra girasse ao redor do Sol, as estrelas próximas dariam a impressão de se moverem contra o pano de fundo das estrelas mais distantes, sempre que, a cada seis meses, deslocássemos nossa perspectiva de um lado da órbita da Terra para o outro. Não se havia descoberto nenhuma “paralaxe anual” desse tipo. Os copernicanos argumentavam que isso se devia ao fato de as estrelas estarem extremamente longe — talvez um milhão de vezes mais distantes do que a Terra está do Sol. Melhores telescópios, no futuro, talvez descobrissem uma paralaxe anual. Os adeptos do geocentrismo consideravam esse argumento uma tentativa desesperada de salvar uma hipótese falha, risível diante das circunstâncias.

     Quando Galileu virou o primeiro telescópio astronômico para o céu, a maré começou a mudar. Ele descobriu que Júpiter tinha um pequeno séqüito de luas descrevendo órbitas ao seu redor, as mais próximas girando mais rápido que as mais afastadas, exatamente como Copérnico tinha concluído a respeito do movimento dos planetas ao redor do Sol. Observou que Mercúrio e Vênus passavam por fases com a Lua (o que indicava que giravam ao redor do Sol.). Além disso, a Lua cheia de crateras e o Sol coberto de manchas, desafiavam a perfeição dos céus. Este pode ter sido, em parte, o tipo de problema que preocupava Tertuliano uns 1300 anos antes, quando pedia: “Se você tem algum tino ou decoro, pare de sondar as regiões do céu, o destino e os grandes segredos do Universo”.

     Ao contrário, Galileu ensinava que se pode interrogar a natureza por meio da observação e da experimentação. Assim, “fatos que à primeira vista parecem improváveis, deixarão cair o manto que os encobre, e, aparecerão em toda a sua beleza simples e nua, mesmo que à luz de explicações escassas”. Esses fatos, que até os céticos podem confirmar, não são uma visão do Universo de Deus mais segura que todas as especulações dos teólogos? E se, todavia, esses fatos contradisserem as convicções daqueles que consideram a sua religião incapaz de cometer erros? Os príncipes da Igreja
ameaçaram o astrônomo idoso com torturas se ele persistisse em lecionar a doutrina abominável de que a Terra se movia. Foi condenado a uma espécie de prisão domiciliar para o resto de sua vida.

     Uma ou duas gerações mais tarde, na época em que Isaac Newton demonstrou que uma física simples e elegante podia explicar quantitativamente — e predizer — todos os movimentos planetários e lunares observados (desde que se assumisse que o Sol estava no centro do Sistema Solar), a ilusão geocêntrica desgastou-se ainda mais.

Distance Ligth Star in Night Sky

     Em 1725, numa tentativa de descobrir o paralaxe estelar, o dirigente astrônomo amador inglês James Bradley, encontrou, por acaso, a aberração da luz. (Acho que o termo aberração da luz traz em si um pouco de caráter inesperado da descoberta). Observando-as ao longo de um ano, descobriu-se que as estrelas traçavam pequenas elipses no céu. Era, conforme se constatou, o que todas as estrelas faziam. Isso não podia ser paralaxe, pois se esperava uma grande paralaxe para as estrelas próximas e outra incapaz de ser detectada para as estrelas distantes. Em lugar disso, a aberração é semelhante a impressão de estarem caindo obliquamente que as gotas de chuva, que atingem um carro em movimento, dão aos passageiros; quanto mais veloz o carro, mais pronunciada a inclinação. Se a Terra estivesse parada no centro do Universo, em vez de se movendo velozmente ao redor do Sol, Bradley não teria descoberto a aberração da luz. Era uma demonstração irrefutável de que a Terra girava em torno do Sol. Convenceu a maioria dos astrônomos e alguns outros, mas não convenceu, na opinião de Bradley, os “anticopernicanos”.

     Só em 1837 observações diretas das estrelas mostraram de forma muito clara que a Terra, de fato, gira ao redor do Sol. A paralaxe anual tão longamente discutida foi por fim descoberta — não por melhores argumentos, mas por melhores instrumentos. Como explicar o que a paralaxe significa é muito mais simples que explicar a aberração da luz, sua descoberta foi muito importante. Colocou o último prego no caixão do geocentrismo. Basta olhar para o seu dedo com o olho esquerdo e depois com o direito, e você verá que ele parece se mover. Todo mundo é capaz de compreender a paralaxe.

     No século XIX, caso ainda existam alguns relutantes, podemos resolver a questão diretamente. Podemos testar se vivemos num sistema centrado na Terra, com planetas afixados em esferas de cristal transparente, ou num sistema centrado no Sol, com planetas controlados a distância pela gravidade dessa estrela. Por exemplo, temos investigados os planetas com radar. Quando fazemos um sinal ricochetear numa lua de Saturno, não captamos nenhum eco de rádio vindo de uma esfera de cristal mais próxima, ligada a Júpiter. Nossas naves espaciais chegam a seus destinos com precisão newtoniana. Quando nossas naves voam a Marte, seus instrumentos não captam nenhum tinido nem detectam cacos de cristal quebrado, ao irromperem pelas “esferas” que — segundo as opiniões autorizadas que prevaleceram durante milênios — impelem Vênus ou o Sol em seus movimentos obedientes ao redor da Terra Central.

     Ao esquadrinhar o Sistema Solar de um ponto além do planeta mais afastado, a Voyager 1, viu, assim como Galileu e Copérnico haviam previsto, o Sol no meio e os planetas em órbitas concêntricas ao seu redor. Longe de ser o centro do Universo, a Terra é apenas um dos pontos em órbita. Por já não estamos convidados em um mundo único, somos agora capazes de alcançar outros mundos e determinar de forma decisiva que tipo de sistema planetário habitamos.

     Todas as outras propostas, e seu número é impressionante, de nos afastar do centro do palco cósmico também encontraram resistência, em partes por razões semelhantes. Parecemos ansiar por privilégios a que não teríamos direito por nossas realizações, mas pelo nosso nascimento, pelo simples fato de sermos humanos e termos nascido sobre a Terra. Poderíamos dar a essa presunção o nome de antropocêntrica — “centrada no humano”.

     Presunção que beira o clímax na noção de que somos criados à imagem de Deus: o Criador e Regente de todo o Universo se parece comigo. Céus, que coincidência! Que conveniente e satisfatório! Xenófanes, filósofo grego do século VI a. C., compreendeu a arrogância desse ponto de vista: Os etíopes atribuem a seus deuses pele preta e nariz arrebitado; os trácios dizem que os seus têm olhos azuis e cabelo vermelho... Sim, e se os bois, os cavalos ou os leões tivessem mãos, pudessem pintar e produzir obras de arte
como os homens; os cavalos pintariam os deuses sob a forma de cavalos e os bois lhes dariam a forma de bois.

     Essas atitudes eram outrora descritas como “provincianas” — a expectativa ingênua de que as hierarquias políticas e as convenções sociais de uma província obscura se estendessem a um imenso império composto de muitas tradições e culturas diferentes; de que as aldeias familiares, as nossas aldeias, são o centro do mundo. Os caipiras quase nada sabem da possibilidade de alternativas. Não conseguem compreender a insignificância de sua província nem a diversidade do Império. Com desenvoltura, aplicam seus próprios padrões e costumes ao resto do planeta. Mas despejados em Viena, por exemplo, Hamburgo ou Nova York, reconhecem tristemente o quanto a sua perspectiva é limitada. Tornam-se “desprovincianizados”.

     A ciência moderna tem sido uma viagem ao desconhecido, com uma lição de humildade em cada parada. Muitos passageiros teriam preferido ficar em casa.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Por Que Sou Agnóstico? — Parte XI

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     Quando me convenci de que o Universo é natural, de que todos os fantasmas e deuses são mitos, a alegria da liberdade permeou todos os meus sentidos, toda a minha alma, toda a minha mente, todas as gotas de meu sangue. As paredes de minha prisão ruíram, o calabouço inundou-se de luz; todas as fechaduras, barras e grilhões dissolveram-se. Eu já não era mais um servo, um empregado ou um escravo; já não havia para mim, qualquer mestre em todo o mundo — nem mesmo no infinito.

     Estava livre. Livre para pensar, para expressar meus pensamentos; livre para viver meu próprio ideal; livre para viver para mim e para aqueles que amava; livre para usar todas minhas faculdades e todos meus sentidos; livre para abrir as asas da imaginação; livre para investigar, adivinhar, sonhar e expectar; livre para julgar e determinar a meu bel-prazer; livre para rejeitar todas crenças cruéis e ignorantes, todos os livros “inspirados” que selvagens produziram, e todas as lendas bárbaras do passado; livre de papas e padres; livre da barreira entre os “escolhidos” e os “excluídos”; livre de todos os erros santificados e das mentiras sacrossantas; livre do medo da danação eterna; livre dos noctívagos monstros alados; livre de todos os demônios, fantasmas e deuses.

     Pela primeira vez estava livre. Já não havia mais nenhum local de entrada proibida nos reinos do intelecto; nenhum ar, nenhum espaço onde a imaginação não pudesse abrir suas asas multicores; nenhuma corrente para meus membros; nenhum flagelo para minhas costas; nenhuma chama para minha carne; nenhum mestre para me intimidar ou ameaçar; nenhum caminho de outrem para ser seguido; nenhuma necessidade de obedecer, adular, rastejar ou fingir.

     Estava livre. Emergi ereto, destemido e feliz. Encarei todos os mundos.

     Então meu coração encheu-se de gratidão por todos heróis e pensadores que deram suas vidas pela liberdade no pensar e no agir — pela liberdade das mãos e do intelecto; por todos aqueles que pereceram ferozmente em campos de batalha; por todos aqueles que morreram acorrentados em calabouços; por todos aqueles que subiram orgulhosamente as escadas de patíbulos; por todos aqueles cujos ossos foram triturados, cuja carne foi marcada e rasgada; por todos aqueles que foram consumidos pelo fogo; por todos os indivíduos sábios, bondosos e bravos de quaisquer terras cujos pensamentos e feitos permitiram que seus filhos fossem livres.

     Jurei que seguraria a tocha que eles seguraram, e que a seguraria alta, para que assim sua luz sobrepujasse a escuridão remanescente.

     Sejamos honestos para conosco, honestos para com os fatos que conhecemos; e, acima de tudo, preservemos a veracidade de nossas almas.

     Mesmo se deuses existirem, não temos como ajudá-los, mas temos como ajudar nosso semelhante. Não podemos amar o inconcebível, mas podemos amar nossas esposas, nossos filhos e nossos amigos.

     Podemos ser honestos quanto à nossa ignorância. Se formos, quando questionados sobre o que há além do horizonte do conhecimento, devemos dizer que não sabemos; podemos dizer a verdade, e desfrutar da abençoada liberdade conquistada pelos bravos; podemos destruir os monstros da superstição, as serpentes ciciantes da ignorância e do medo; podemos expulsar de nossas mentes as aterrorizantes presas que rasgam e ferem; podemos civilizar nossos semelhantes; podemos preencher nossas vidas com ações generosas, com palavras amorosas, com arte, com música e com todo o arroubo do amor; podemos inundar nossa existência com o brilho do Sol, com o divino clima da bondade; e podemos beber até a última gota do cálice dourado da felicidade.

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Por Que Sou Agnóstico? — Parte X

Por Que Sou Agnóstico? — Parte X

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     Se este Deus existe, deve ser uma pessoa, um ser consciente. Quem é capaz de imaginar uma personalidade infinita? Este Deus deve possuir força, e não somos capazes de conceber força separadamente da matéria. Este Deus deve ser material. Deve possuir meios através dos quais transforma força no que denominamos pensamento. Quando pensa, usa força, e esta força precisa ser restituída. Ainda assim, nos dizem que ele é infinitamente sábio. Se for, então ele não pensa. O pensamento é uma escada, um processo pelo qual chegamos a uma conclusão. Aquele que já conhece tudo, não pensa. Não pode ter esperanças ou temores. O conhecimento perfeito exclui a paixão, a emoção. Se Deus é infinito, não tem desejos, pois já possui tudo, e quem não deseja, não age. O infinito jaz na serenidade eterna.

     Conceber tal ser é tão impraticável quanto imaginar um triângulo quadrado ou um círculo sem diâmetro.

     Ainda assim nos dizem que temos o dever de amar a Deus. Podemos amar o desconhecido, o inconcebível? É possível que o amor surja por obrigação? É nosso dever agir com justeza, com honestidade, mas amar não pode ser imposto como dever. É impossível obrigar alguém a admirar um quadro, a encantar-se com um poema ou a emocionar-se com uma música. A admiração não pode ser controlada. O amor e o gosto não estão sujeitos à vontade. O amor é necessariamente livre, surge do coração como o perfume de uma flor.

     Há incontáveis anos os homens e as mulheres vêm tentando amar os deuses, tentando abrandar seus corações e conseguir sua ajuda.

     Vejo-os todos, o panorama desfila ante meus olhos. Vejo-os com as mãos estendidas e os olhos reverentemente fechados em adoração ao Sol. Vejo-os curvando-se diante de meteoritos por medo; suplicando a serpentes, bestas e árvores sagradas; rezando para ídolos esculpidos em madeira e pedra. Vejo-os erigindo altares para poderes invisíveis e manchando-os com o sangue de crianças e animais. Vejo incontáveis padres e ouço seus cantos solenes. Vejo as vítimas moribundas, os altares fumegantes, os incensários pendulantes e as nuvens elevando-se. Vejo homens semideuses — os desafortunados Cristos de muitas terras. Vejo acontecimentos triviais do dia-a-dia se transformando em milagres ao serem passados de boca a boca. Vejo os profetas insanos lendo o livro secreto do destino através de sinais e sonhos. Vejo-os todos. Os assírios cantando as preces de Assur e Ishtar; os hindus adorando Brahma, Vishnu e Draupadi; os caldeus fazendo sacrifícios a Bel e Rea; os egípcios curvando-se a Ptah, Osíris e Ísis; os medos aplacando a tempestade e adorando o fogo; os babilônios suplicando a Bel e Merodach. Vejo-os todos ao redor do Eufrates, do Tigre, do Ganges e do Nilo. Vejo os gregos construindo templos para Zeus, Netuno e Vênus. Vejo os romanos ajoelhando-se a uma centena de deuses. Vejo outros rejeitando ídolos e devotando suas expectativas e seus medos a uma vaga imagem mental. Vejo as multidões boquiabertas aceitando mitos e fábulas de anos remotos como sendo verdades. Vejo-os dar seu trabalho, sua riqueza, para vestir padres, para construir igrejas com tetos ornamentados, corredores espaçosos e abóbadas reluzentes. Vejo-os trajando farrapos, amontoados em tocas e barracas, devorando cascas e migalhas, para que assim possam fazer mais doações a fantasmas e deuses. Vejo-os criar doutrinas cruéis e disseminar o ódio, a guerra e a morte pelo mundo. Vejo-os com as faces empoeiradas nos negros dias de peste e morte, quando as faces estão pálidas e os lábios lívidos pela falta de pão. Ouço suas orações, seus gemidos, seus suspiros. Vejo-os beijar lábios frios enquanto suas lágrimas cálidas caem sobre as faces dos falecidos. Vejo nações malograrem e desvanecerem; vejo-as sendo capturadas e escravizadas. Vejo altares abandonados ruírem; vejo templos lentamente se desfazerem em pó. Vejo seus deuses envelhecendo, adoecendo, morrendo e sendo esquecidos. Vejo-os caindo de seus tronos imaginários, desamparados e inertes; seus adoradores não recebem amparo. Vejo a injustiça triunfar; trabalhadores remunerados com chibatadas; bebês comercializados; inocentes executados em patíbulos; heróis reduzidos a cinzas. Vejo terremotos destruidores, vulcões abrasadores, ciclones famintos, inundações arrasadoras e relâmpagos letais.

     As nações sucumbiram. Os deuses estão mortos. O trabalho e a riqueza perderam-se. Os templos foram construídos em vão. Todas as bocas pereceram sem resposta às suas súplicas.

     Então me perguntei: existe um poder sobrenatural, uma mente arbitrária, um Deus entronado, uma vontade suprema que maneja os cordéis do mundo, que comanda tudo, à qual subordinam-se todas as causas?

     Não nego, pois não sei — mas também não acredito. Creio que o natural é o supremo; que na infinita cadeia de eventos, nenhum elo pode ser quebrado ou perdido; que não há poderes sobrenaturais que possam responder às orações; que não há qualquer poder que a adoração possa persuadir ou mudar; que não há qualquer força que se importa com o homem.

     Acredito que a Natureza envolve tudo com seus braços onipresentes; que não há interferências; nenhum acaso; que por detrás de cada evento há um sem-número de causas inexoráveis; que em decorrência de cada evento, inevitavelmente haverá incontáveis efeitos.

     Cabe ao homem proteger-se. Ele não pode depender do sobrenatural — de um pai imaginário nos céus. Deve proteger-se através da investigação dos fatos da Natureza, através do desenvolvimento de seu intelecto, para com isso sobrepujar seus obstáculos e tirar proveito das forças da Natureza.

     Deus existe?

     Eu não sei.

     O homem é imortal?

     Eu não sei.

     Mas de uma coisa eu sei: nem a expectativa, nem o medo, nem a crença, nem a negação podem mudar algo. As coisas são como são; serão como devem ser.

     Aguardamos e temos esperanças.

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Por Que Sou Agnóstico? — Parte XI

Por Que Sou Agnóstico? — Parte IX

Por Que Sou Agnóstico? — Parte IX

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     Então dei outro passo. Perguntei: que é a matéria, a substância? Pode ser destruída, aniquilada? Será possível conceber a destruição do menor átomo de substância? Um sólido pode ser triturado até virar pó, pode ser transformado em líquido, o líquido pode ser transformado em gás — mas tudo continua existindo. Nada é perdido, nada é destruído.

     Deixe que um Deus infinito — se é que existe — ataque um grão de areia com seu infinito poder. Ele não poderá destruí-lo. A substância desafia toda a força, é indestrutível.

     Então dei mais um passo.

     Se a matéria é indestrutível, se não pode ser aniquilada, então não pode ter sido criada.

     Tudo que é indestrutível também é necessariamente incriável.

     Então perguntei: que é força? Não podemos conceber a criação ou a destruição da força. Ela pode ser convertida de uma forma para outra — de mecânica para calórica —, mas não pode ser destruída, não pode ser aniquilada.

     Se a força não pode ser destruída, não pode ter sido criada. Portanto, é eterna.

     Outra coisa: a matéria não pode existir à parte da força; a força não pode existir à parte da matéria. A matéria não poderia ter existido antes da força; a força não poderia ter existido antes da matéria. Matéria e força só podem ser concebidas em conjunto. Isso tem sido demonstrado por vários cientistas, mas mais contundentemente por Buchner.

     O pensamento é uma forma de força, conseqüentemente não pode ter causado ou criado a matéria. A inteligência é uma forma de força, por isso não pode ter existido sem ou à parte da matéria. Sem substância não pode haver uma mente, nem vontade, nem qualquer espécie de força; não poderia ter existido substância sem força.

     A matéria e a força não foram criadas. Existiram desde a eternidade. São indestrutíveis.

     Não houve, não há um criador. Então veio a questão: Existe um Deus? Existe um ser infinitamente inteligente, bondoso e poderoso que governa o mundo?

     Pode haver bondade sem muita inteligência, mas parece-me que a inteligência perfeita e a bondade perfeita precisam existir necessariamente em conjunto.

     Na natureza coexistem — pelo menos ao meu ver — bem e mal, inteligência e ignorância, bondade e crueldade, dedicação e desprezo, economia e desperdício. Vejo meios que não cumprem seus fins; desígnios que parecem malograr.

     Parece-me infinitamente cruel que a vida alimente-se da vida — criar animais que devoram outros animais.

     Enchem-me de horror os dentes, os bicos, as garras e as presas que rasgam e dilaceram. O que pode ser mais apavorante que um mundo em guerra? Em cada folha, um campo de batalha; em cada flor, um gólgota; em cada gota de água, perseguição, captura e morte. Em cada sombra, vida à espreita de vida. Em cada folha de grama, algo que mata e algo que sofre. Em todo lugar, o forte vivendo às custas do fraco, o superior vivendo às custas do inferior. Em todo lugar, o fraco, o insignificante vivendo às custas do forte, o inferior às custas do superior, o mais elevado servindo de alimento ao mais baixo — o homem sendo sacrificado em nome de micróbios.

     Morticínio universal. Em todo local, dor, enfermidade e morte. Morte esta que não aguarda por cabelos grisalhos, mas abraça bebês e jovens felizes; morte esta que separa a mãe de sua criança frágil e indefesa; morte esta que preenche o mundo com dor e lágrimas.

     Como o cristão ortodoxo pode explicar tais coisas?

     Sei que a vida é boa. Lembro-me da luz do Sol e da chuva. Mas então penso nos terremotos e nas inundações. Não esqueço da saúde e da colheita, do lar e do amor, mas o que dizer da pestilência e da fome? Não consigo harmonizar todas essas contradições, essa mescla de bênçãos e agonias, com a existência de um Deus infinitamente bondoso, sábio e poderoso.

     O teólogo diz que o chamado mal existe para nosso bem; que fomos colocados neste mundo de pecado e arrependimento para que com isso desenvolvêssemos o caráter. Se isso é verdade, então por que crianças morrem? Milhões e milhões morrem nos braços de suas mães após uns poucos suspiros. Eles nem chegam a ter chance de desenvolver seu caráter.

     O teólogo diz que serpentes receberam presas para protegerem-se de seus inimigos. Mas por que o mesmo Deus que as fez também fez seus inimigos? Por que muitas espécies de serpentes não têm presas?

     O teólogo diz que Deus encouraçou o hipopótamo, que cobriu seu corpo — exceto na região inferior — com placas e escamas que outros animais não podiam perfurar com dentes ou presas. Mas este mesmo Deus fez os rinocerontes e dotou-os de um chifre no nariz, com o qual estripam o hipopótamo.

     Este mesmo Deus fez a águia, o urubu, o falcão e as suas vítimas indefesas.

     Para cada desígnio positivo parece haver outro negativo.

     Se Deus criou o homem, se é o pai de todos nós, então por que fez os criminosos, os loucos, os deformados e os débeis mentais?

     Os homens inferiores deveriam agradecer a Deus? A mãe que embala em seu seio uma criança com retardamento mental deveria agradecer a Deus? Um indivíduo escravizado deveria agradecer a Deus?

     O teólogo diz que Deus governa os ventos, as chuvas e os raios. Então o que dizer dos ciclones, das inundações, das secas e dos fulgurantes relâmpagos que matam?

     Suponhamos que existisse um homem neste país que pudesse controlar os ventos, as chuvas e os raios. Suponhamos que houvéssemos elegido-o para governar tais coisas, e que ele tivesse permitido que estados inteiros secassem e definhassem ao mesmo tempo em que desperdiçava água com chuvas no oceano. Suponhamos que permitisse que ventanias destruíssem cidades e transformassem milhares de corpos de homens e mulheres em rubros despojos amórficos; que permitisse que relâmpagos ceifassem a vida de mães e bebês. O que diríamos? O que pensaríamos deste selvagem?

     Ainda assim, de acordo com os teólogos, este fado representa exatamente a vontade Deus.

     O que pensaríamos de um homem que decide não proteger seus amigos quando possui plenos poderes para fazê-lo? Por que o Deus cristão permitiu que seus inimigos torturassem e incinerassem seus amigos, seus adoradores?

     Quem é suficientemente ingênuo para pretender explicar tais coisas?

     Faz sentido que um homem infinitamente bondoso e infinitamente poderoso permita que inocentes sejam encarcerados, acorrentados em calabouços e vejam suas vidas passarem por entre suspiros cansados e paredes úmidas?

     Se Deus governa o mundo, por que a inocência não é um escudo perfeito? Por que a injustiça triunfa?

     Quem pode responder a essas perguntas?

     A única resposta digna de um homem inteligente e honesto é esta: eu não sei.

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Por Que Sou Agnóstico? — Parte X

Por Que Sou Agnóstico? — Parte VIII

Por Que Sou Agnóstico? — Parte VIII

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     Os teólogos sempre insistiram que seu Deus era o criador de todos os seres viventes; que as formas, partes, funções e cores dos animais eram expressão de sua imaginação, gosto e sabedoria; que os fez exatamente como são atualmente; que inventou barbatanas, pernas e asas; que os equipou com armas e proteções; que os fez em harmonia com o alimento e o clima, levando em consideração todos os fatos que afetam a vida.

     Eles insistiam que o homem era uma criação especial, desvinculado totalmente dos animais abaixo dele. Também afirmavam que todas as formas de vegetações atuais — desde os musgos até as florestas — são as mesmas desde sua criação.

     Homens de gênio, em sua maioria isentos de preconceitos religiosos, estavam examinando essas coisas, estavam procurando por fatos. Estavam examinando os fósseis de animais e plantas; as formas dos animais — seus ossos e músculos, os efeitos do clima e da alimentação, as estranhas modificações pelas quais haviam passado.

     Humboldt publicou suas dissertações repletas de grandes pensamentos, de esplêndidas generalizações, com sugestões que estimulavam o espírito investigativo e com conclusões que satisfaziam a mente. Demonstrou a uniformidade da Natureza — o parentesco entre tudo que vive e cresce, entre tudo que respira e pensa.

     Darwin, com Origem das Espécies, com suas teorias sobre a Seleção Natural — a sobrevivência dos mais aptos — e sobre a influência do meio-ambiente, derramou uma torrente luminosa sobre as grandes questões da vida animal e vegetal.

     Essas coisas haviam sido conjeturadas, profetizadas, afirmadas e insinuadas por muitos outros. Mas Darwin, com perfeito esmero, com infinita paciência e honestidade, encontrou os fatos, cumpriu as profecias e demonstrou a veracidade das hipóteses, insinuações e afirmações. Ele foi, em minha opinião, o mais arguto observador, o melhor juiz do significado e do valor de um fato, o maior Naturalista que o mundo já produziu.

     A visão teológica começou a parecer pequena e reles.

     Spencer propôs sua teoria da evolução e respaldou-a com inúmeros fatos. Colocando-se a grande altitude, com os olhos de um filósofo, de um profundo pensador, perscrutou o mundo. Ele influenciou o pensamento dos mais sábios.

     A teologia parecia mais absurda que nunca.

     Huxley tomou o partido dos darwinistas. Nenhum homem jamais teve uma espada mais afiada e um escudo mais eficiente. Ele desafiou o mundo. Os grandes teólogos e os pequenos cientistas — aqueles com mais coragem que inteligência — aceitaram o desafio. O que restou de seus pobres corpos foi carregado pelos seus amigos.

     Huxley tinha a inteligência, a dedicação, o gênio e a coragem para expressar seu pensamento. Ele foi absolutamente leal ao que julgava ser verdadeiro. Sem preconceitos ou temores, seguiu as pegadas da vida desde as formas mais simples até as mais sofisticadas.

     A teologia parecia ainda menor.

     Haeckel partiu da célula mais simples e, de mudança em mudança, de forma em forma, seguindo a linha do desenvolvimento, o caminho da vida, chegou à raça humana. Tudo isso naturalmente, sem recorrer a interferências externas.

     Li as obras destes grandes homens e de muitos outros, e me convenci de que eles estavam certos e de que os teólogos — todos os crentes da “criação especial” — estavam absolutamente errados.

     O Jardim do Éden desvaneceu; Adão e Eva viraram pó; a serpente rastejou de volta à grama; Jeová tornou-se um miserável mito.

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Por Que Sou Agnóstico? — Parte IX

Por Que Sou Agnóstico? — Parte VII

Por Que Sou Agnóstico? — Parte VII

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     Minha atenção agora se voltava às outras religiões: aos livros sagrados, às crenças e às cerimônias de outras terras — da Índia, do Egito, da Assíria, da Pérsia e de nações extintas ou decadentes.

     Concluí que todas as religiões tinham o mesmo fundamento: a crença no sobrenatural, num poder acima da natureza, o qual o homem poderia influenciar através da adoração, com sacrifícios e orações.

     Descobri que todas as religiões assentavam-se sobre uma concepção equivocada da natureza; que a religião de um povo constituía a ciência daquele povo, ou seja, sua explicação do mundo — da vida e da morte, da origem e do destino.

     Percebi que todas religiões tinham substancialmente a mesma origem; que, na verdade, nunca houve senão uma religião no mundo. Os ramos e as folhas podem diferir, mas o tronco é o mesmo.

     O nível da religiosidade de um pobre africano que derrama seu coração a uma divindade de pedra é idêntico ao de um padre de batina que suplica ao seu Deus. É o mesmo erro, a mesma superstição que dobra os joelhos e fecha os olhos de ambos. Os dois pedem ajuda ao sobrenatural; nenhum desconfia da absoluta uniformidade da natureza.

     Parece-me provável que a primeira cerimônia religiosa organizada tenha sido a adoração do Sol. O Sol era o “Pai Céu”, o “Onividente” — a fonte da vida, a lareira do mundo. O Sol era considerado um deus que combatia a escuridão, a qual representava o poder do mal, o inimigo do homem.

     Houve muitos deuses-sol; parecem ter sido as divindades mais importantes das religiões antigas; foram adorados em muitas terras, por muitas nações já extintas.

     Apolo era um deus-sol que combateu e conquistou a serpente da noite. Baldur era um deus-sol apaixonado pela Aurora — uma donzela. Krischna era um deus-sol; em seu nascimento, o Ganges foi estremecido desde sua nascente até sua foz, e todas as árvores — tanto as vivas quanto as mortas — floresceram. Hércules era um deus-sol. Também o era Sansão, cuja força estava em seus cabelos, ou seja, em seus raios; Dalila — a sombra, a escuridão — foi quem o despojou de sua força. Osíris, Baco, Mitra, Hermes, Buda, Quetzalcoatl, Prometeu, Zoroastro, Perseu, Cadom, Lao-tsé, Fo-hi, Horus, Ramsés — todos eram deuses-sol.

     Todos esses deuses descendiam de pais deuses e de mães virgens. O nascimento de quase todos era anunciado pelas estrelas — celebrado por uma música celestial —, e vozes declaravam que uma bênção havia chegado ao mundo desventurado. Todos esses deuses nasceram em lugares humildes — em cavernas, sob árvores, em estalagens —, e tiranos tentaram matá-los quando eram bebês. Todos esses deuses-sol nasceram no solstício de inverno — no natal. Quase todos eram adorados por “homens sábios”. Todos jejuaram por quarenta dias. Todos ensinavam através de parábolas. Todos realizaram milagres. Todos tiveram uma morte violenta. Todos ressuscitaram.

     A história desses deuses é exatamente igual à história de nosso Cristo.

     Isso não é uma coincidência, não é um acidente. Cristo era um deus-sol. Cristo era um novo nome para o último sobrevivente dos deuses-sol. Cristo não foi um homem, mas um mito — não uma vida, mas uma lenda.

     Descobri que não apenas nosso cristo era um plágio, mas que todos nossos sacramentos, símbolos e cerimônias eram legados oriundos de um passado já sepultado. Nada é original no cristianismo.

     A cruz já era um símbolo milhares de anos antes de nossa era. Era o símbolo da vida, da imortalidade — do deus Agni —, e foi entalhada sobre tumbas muitas eras antes de a primeira linha da Bíblia ter sido escrita.

     O batismo é muito mais antigo que o cristianismo — que o judaísmo. Hindus, egípcios, gregos e romanos já tinham sua Água Sagrada muito antes de o primeiro católico ter nascido. A eucaristia foi apropriada dos pagãos. Ceres era a deusa dos campos, e Baco, o deus do vinho; durante o festival da colheita, faziam bolos, trigo e diziam: “Esta é a carne de nossa deusa”; bebiam vinho e bradavam: “Este é o sangue de nosso deus”.

     Os egípcios tinham uma Trindade. Adoravam Osíris, Isis e Horus muito antes de o Pai, o Filho e o Espírito Santo tornarem-se conhecidos.

     A Árvore da Vida cresceu na Índia, na China e entre os Astecas bem antes de o Jardim do Éden ter sido plantado.

     Outras nações já tinham seus livros sagrados muito antes de nossa Bíblia ter sido conhecida.

     Os dogmas da Queda do Homem, da Expiação e da Salvação pela Fé são muito anteriores à nossa religião.

     Nada em nosso sagrado evangelho é novidade, nada é original em nosso “esquema divino”. É tudo antigo — tudo emprestado, recortado e remendado.

     Percebi que todas as religiões foram produzidas naturalmente — que eram todas variantes de uma só —, e então concluí que não passavam de obras humanas.

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Por Que Sou Agnóstico? — Parte VIII

Por Que Sou Agnóstico? — Parte VI

Por Que Sou Agnóstico? — Parte VI

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     Até o momento não havia lido nada contra nossa abençoada religião, salvo o que tinha encontrado em Burns, Byron e Shelley. Por acaso, acabei lendo Volney, o qual demonstra que todas religiões foram e são estabelecidas de modo idêntico: todas tiveram seus Cristos, seus apóstolos, seus milagres e seus livros sagrados; e então pergunta como se poderia decidir qual delas é a verdadeira — uma pergunta que ainda aguarda por resposta.

     Li Gibbon, o maior dos historiadores, que dominava seus fatos com tanta maestria quanto César dominava as suas legiões. Aprendi que cristianismo é apenas outro nome para paganismo — para a antiga religião, despojada de sua beleza; aprendi que alguns absurdos foram trocados por outros, que alguns deuses foram mortos, que uma multidão de demônios foi criada e que o inferno foi aumentado.

     E então li A Era da Razão, de Thomas Paine. Permitam-me dizer uma palavra sobre este sublime homem difamado. Ele veio a este país1 logo antes da Revolução; trouxe uma carta de apresentação de Benjamin Franklin, naquela época o maior dos americanos.

     Na Filadélfia, Paine foi contratado como redator da Pennsylvania Magazine. Sabemos que escreveu pelo menos cinco artigos. O primeiro era contra a escravidão; o segundo era contra a contenda; o terceiro era sobre o tratamento de prisioneiros — demonstrando que o objetivo deveria ser reformá-los, não puni-los nem degradá-los; o quarto era sobre os direitos das mulheres; o quinto era em favor da formação de entidades voltadas à prevenção de crueldades contra crianças e animais.

     A partir disso pode-se perceber que ele sugeriu as grandes reformas de nosso século.

     A verdade é que este homem trabalhou toda a sua vida pelo bem de seus semelhantes; moveu mais esforços para fundar a Grande República que qualquer outro homem sob a nossa bandeira.

     Apresentou seus pensamentos sobre religião — sobre as Sagradas Escrituras, sobre as superstições de seu tempo. Era perfeitamente sincero, e tudo que disse era bondoso e justo.

     A Idade da Razão encheu de ódio os corações daqueles que amavam seus inimigos; o ocupante de todo púlpito ortodoxo tornou-se, e ainda é, um ferrenho detrator de Thomas Paine.

     Ninguém respondeu — nem irá responder — suas objeções à Bíblia, seus argumentos contra o dogma da inspiração.

     Ele não se insurgiu contra todas as superstições de seu tempo. Apesar de odiar Jeová, louvava o Deus da Natureza, o criador e preservador de tudo. Mas nisto estava equivocado, pois, como Watson disse em sua resposta a Paine, o Deus da Natureza é tão insensível e cruel quanto o Deus da Bíblia.

     Todavia, Paine foi um dos pioneiros, um dos titãs, um dos heróis que, de bom grado, dedicaram suas vidas inteiras, cada ato, cada pensamento, à civilização e à emancipação da humanidade.

     Li Voltaire, o maior homem de seu século, o qual fez mais pela liberdade de pensamento e de expressão que quaisquer outros seres humanos ou “divinos”. Voltaire, que despedaçou a máscara da hipocrisia, encontrando por detrás do sorriso a carantonha do ódio. Voltaire, que combateu a selvageria da lei, as decisões cruéis de cortes venais; que resgatou vítimas de rodas2 e ecúleos.3 Voltaire, que travou guerra contra a tirania dos tronos, a ganância e a perversidade do poder. Voltaire, cujo intelecto arremessou setas farpadas e envenenadas contra os padres; que fez os devotos hipócritas, que o condenaram publicamente, rirem de si mesmos por dentro. Voltaire, que tomou o partido dos oprimidos, resgatou os desafortunados, defendeu os humildes e os fracos, civilizou juízes, revogou leis e aboliu a tortura em sua terra natal.

     Em todas direções, este homem incansável combateu o absurdo, o milagroso, o sobrenatural, o idiota, o injusto. Não tinha reverência à ascendência. Não se intimidava ante o esplendor e a pompa, ante o crime coroado, ante a afetação mitrada. Sob a coroa viu um criminoso; sob a mitra, um hipócrita.

     Como sentença de sua consciência, de sua razão, pronunciou seu julgamento contra toda a barbárie de seu tempo — um julgamento que vem sendo corroborado pelo mundo inteligente. Voltaire acendeu a tocha e passou aos outros a chama sagrada — cuja luz ainda brilha, e continuará brilhando enquanto o homem amar a liberdade e buscar a verdade.

     Li Zenão, o homem que, séculos antes do nascimento de Cristo, disse que os homens não têm direito de posse sobre seus semelhantes: “Não importa se você reivindica a posse de um escravo por compra ou captura, é um pretexto injusto. Aqueles que alegam direitos de posse sobre seus semelhantes, estão fitando a mina e esquecendo-se de que a justiça deveria governar o mundo”.

     Familiarizei-me com Epicuro, que ensinava a religião da utilidade, da temperança, da coragem e da sabedoria, e que disse: “Por que temer a morte? Enquanto eu sou, a morte não é; e, quando ela for, eu já não serei. Por que deveria temer o que não pode ser enquanto sou?”.

     Li sobre Sócrates, o qual, na ocasião do julgamento que decidiria o destino de sua vida, disse a seus juízes, entre outras coisas, estas magníficas palavras: “Não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa”.

     Então li sobre Diógenes, o filósofo que odiava a superfluidade, o inimigo do desperdício e da ganância. Este um dia entrou no templo, aproximou-se respeitosamente do altar, esmagou um pilho entre seus dedos, e disse solenemente: “O sacrifício de Diógenes a todos os Deuses”. Isto parodiou a adoração de todo o mundo, escarneceu todas as crenças, condensou toda a essência da religião num único ato.

     Diógenes devia conhecer esta passagem “inspirada”: “sem derramamento de sangue, não há remissão”.4

     Comparei Zenão, Epicuro e Sócrates — três pagãos difamados que nunca chegaram a conhecer o Velho Testamento ou os Dez Mandamentos — com Abraão, Isaac e Jacó — os três favoritos de Jeová —, e fui depravado o suficiente para considerar os pagãos superiores aos patriarcas — e também ao próprio Jeová.

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1 : Robert G. Ingersoll foi um livre-pensador americano do século XIX, ou seja, está referindo-se aos Estados Unidos.

2 : Suplício que consistia em amarrar alguém numa espécie de cruz em forma de X, quebrar-lhe os membros com uma maça e, em seguida, atar-lhe o corpo a uma roda, que se fazia girar. (Dic. Aurélio)

3 : Cavalo de madeira, no qual se torturavam os acusados ou condenados; ecúleo. (Dic. Aurélio)

4 : Cf. Hebreus 9:22 e Levítico 17:11.

Por Que Sou Agnóstico? — Parte VII

Por Que Sou Agnóstico? — Parte V

terça-feira, 21 de junho de 2011

Por Que Sou Agnóstico? — Parte V

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     Visto que passei minha juventude lendo livros sobre religião — sobre o “renascer”, sobre a desobediência dos nossos primeiros pais, sobre a expiação, a salvação através da fé, a perversidade do prazer, as degradantes conseqüências do amor, a impossibilidade de se alcançar o céu através da honestidade e da generosidade —, e tendo me tornado relativamente enfastiado de pensamentos embotados e confusos, então se pode imaginar minha surpresa, meu encanto ao ler os poemas de Robert Burns.

     Estava familiarizado com escritos de devotos hipócritas, de fanáticos insensíveis, de puritanos sem coração. Mas aqui estava um homem honesto por natureza. Conhecia as obras daqueles que consideravam toda a natureza depravada e viam o amor como a herança e o eterno testemunho do pecado original. Mas aqui estava um homem que tirava alegria do lodo, que transformava camponesas em deuses e entronava os homens honestos. Um indivíduo cuja simpatia, com braços amorosos, abraçava todas as formas de vida sofredora; que odiava toda espécie de escravidão; que era tão natural quanto o azul do céu; que possuía um humor tão aprazível quanto um dia de outono; cuja inteligência era tão afiada quanto a lança de Ituriel¹ e cujo desprezo era tão devastador quanto o sopro do simum.² Um homem que amava este mundo, esta vida, as coisas do dia-a-dia, e que colocava acima de tudo o êxtase do amor humano.

     Li e reli, com arrebatamento, lágrimas e sorrisos, sentindo que por entre aquelas linhas pulsava um grandioso coração.

     Os poetas religiosos, lúgubres, artificiais e espirituais foram esquecidos ou permaneceram apenas como fragmentos, tênues lembranças dos horrores de monstruosos sonhos distorcidos.

     Finalmente havia encontrado um homem natural, que desprezava o credo cruel de sua pátria, que era corajoso e sensível o suficiente para dizer: “Todas as religiões são velhas fábulas; um homem honesto não tem nada a temer, nem neste mundo, nem em outros”.

     Um homem que teve gênio para escrever a Prece de São Willie, um poema que crucificou o calvinismo e trespassou seu árido coração com a lança do bom senso, um poema que transformou toda crença ortodoxa em objeto de desprezo e infinito escárnio.

     Burns tinha seus defeitos, suas fragilidades. Era intensamente humano. Ainda assim, eu preferiria aparecer bêbado na “Cadeira do Julgamento” e dizer que era o autor de “Homens são homens por isto”, que estar perfeitamente sóbrio e admitir que havia vivido e morrido como um presbiteriano escocês.

     Li Cain de Byron, no qual, como em Paraíso Perdido, o Demônio parece ser o melhor deus — li suas maravilhosas, sublimes e pungentes linhas; li seu Prisioneiro de Chillon — seu melhor —, um poema que encheu meu coração de ternura, de piedade e de ódio ferrenho à tirania.

     Li Rainha Mab de Shelley, um poema repleto de beleza, coragem, reflexão, benevolência, lágrimas e desprezo, no qual uma alma corajosa derruba as paredes da prisão e inunda celas com luz. Li A uma Cotovia, uma chama alada, apaixonada como sangue, terna como uma lágrima, pura como a luz.

     Li Keats, “cujo nome estava escrito em água”; li As vésperas de santa Inês, uma história contada com uma arte tão espontânea que este pobre mundo trivial transforma-se num mundo encantado; Ode a uma urna grega, que preenche a alma com um amor eternamente sequioso, com todo o arrebatamento da canção imaginada; Ode a um Rouxinol, uma melodia que encerra a memória da manhã, uma melodia que se desvanece num ocaso entre lágrimas, assaltando os sentidos com sua perfeição.

     Então li Shakespeare, as peças, os sonetos, os poemas — li tudo. Contemplei um novo céu e uma nova Terra; Shakespeare, que conhecia a mente o coração do homem — as esperanças e os medos, os amores e os ódios, os vícios e as virtudes da raça humana —, cuja imaginação leu os registros borrados por lágrimas, leu as páginas ensangüentadas de todo o passado e viu que o brilho da esperança e do amor estava ausente; Shakespeare, que sondou cada profundeza — enquanto estava no mais alto pico, suas asas lançavam suas sombras.

     Comparei as peças de Shakespeare com os livros “inspirados” — Romeu e Julieta com Cântico dos Cânticos, Rei Lear com Jó, e Sonetos com Salmos —, e concluí que Jeová não dominava a arte da oratória. Comparei as mulheres de Shakespeare — suas mulheres perfeitas — com as mulheres da Bíblia. Percebi que Jeová não era um escultor, não era um pintor — não era artista; carecia do poder que transforma o barro em carne; carecia da arte, do toque plástico que gera a forma impecável, do sopro que proporciona a vida livre e alegre, do gênio que dá luz à perfeição.

     Os livros sagrados de todo o mundo são porcarias inúteis e pedregulhos toscos em comparação com o ouro faiscante e as gemas reluzentes de Shakespeare.

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Por Que Sou Agnóstico? — Parte VI

Por Que Sou Agnóstico? — Parte IV

Por Que Sou Agnóstico? — Parte IV

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     Todo o tempo estava alheio a quaisquer ciências, desconhecia totalmente o outro lado — não sabia nada sobre todas as objeções levantadas contra as Sagradas Escrituras ou contra o perfeito credo Congregacional. Obviamente, tinha ouvido os ministros falarem sobre blasfemadores, infiéis infames e zombeteiros que riam das coisas sacras. Eles não refutaram seus argumentos, mas despedaçaram seu caráter e demonstraram através da fúria assertiva, que estavam a serviço do Diabo. Mesmo assim, apesar de tudo que ouvi, apesar de tudo que li, não conseguia acreditar. Meu coração e minha mente diziam Não.

     Por algum tempo abandonei os sonhos, as insanidades, as ilusões, as desilusões e os pesadelos da teologia. Estudei um pouco de astronomia; examinei os mapas dos céus; aprendi os nomes de algumas das constelações, de algumas estrelas; pesquisei algo sobre seus volumes e velocidades com que giravam em suas órbitas; obtive uma modesta noção dos espaços astronômicos; descobri que algumas das estrelas conhecidas estavam tão distantes nas profundezas do espaço, que sua luz, viajando a trezentos mil quilômetros por segundo, levava vários anos para atingir este pequeno planeta; descobri que, quando comparada às grandes estrelas, nossa Terra reduzia-se a um simples grão de areia, um átomo; descobri que a velha crença de que o exército dos céus [estrelas] havia sido criado em benefício do homem, era infinitamente absurda.

     Comparei o que realmente se conhecia sobre as estrelas com a narração conforme o Gênesis. Descobri que o autor do livro inspirado não tinha qualquer conhecimento de astronomia — que era tão ignorante quanto um selvagem. Alguém imagina que o autor do Gênesis realmente sabia algo sobre o Sol, sobre seu tamanho? Que estava familiarizado com Sirius, a estrela do Norte? Que conhecia algo sobre as constelações tão distantes que sua luz levou dois milhões de anos para chegar aos nossos olhos?

     Se tivesse consciência desses fatos, teria dito que Jeová trabalhou por quase seis dias para fazer este mundo, mas apenas levou parte da tarde do quarto dia para fazer o Sol e Lua e todas as estrelas?

     Todavia, milhões de pessoas insistem que o escritor do Gênesis estava inspirado pelo Criador.

     Agora, os homens inteligentes que não estão amedrontados, cujos cérebros não foram paralisados pelo medo, sabem que a sagrada história da criação foi escrita por um selvagem ignorante. Sabem que a história é incompatível com os fatos conhecidos e que todas as estrelas que reluzem nos céus atestam que seu autor era um bárbaro isento de qualquer inspiração.

     Admito que o desconhecido autor do Gênesis foi sincero, que escreveu o que acreditava ser a verdade, que fez o melhor que pôde. Ele não alegou estar inspirado, não fingiu que a história lhe havia sido contada por Jeová, mas simplesmente expôs os “fatos” assim como os compreendia.

     Após aprender um pouco sobre as estrelas, conclui que este escritor — este escriba “inspirado” — havia sido iludido por mitos e lendas, e que não sabia mais sobre a criação que o teólogo médio de meu tempo. Em outras palavras, não sabia absolutamente coisa alguma.

     Permitam-me, aqui, dizer aos ministros que estão me contestando para virarem suas armas noutra direção. Esses reverendos deveriam atacar os astrônomos. Deveriam anatematizar e envilecer Kepler, Copérnico, Newton, Herschel e Laplace, pois estes homens foram os verdadeiros destruidores da história sagrada. Então, após terem-se livrado deles, podem mover guerra contra as estrelas e contra o próprio Jeová, por ter fornecido evidências contra a veracidade de seu livro.

     Depois, estudei um pouco de geologia. Apenas o suficiente para conhecer algo sobre as principais descobertas e as conclusões a que se havia chegado. Aprendi algo sobre a ação do fogo e da água; sobre a formação das ilhas e dos continentes; sobre as rochas sedimentares e ígneas; sobre as medidas de carvão; sobre escarpas calcárias; algo sobre recifes de coral; sobre os depósitos criados por rios, sobre o efeito dos vulcões, das geleiras e de todo o mar circundante — apenas o suficiente para concluir que as rochas laurencianas¹ eram milhões de anos mais antigas que a grama sob meus pés; apenas o suficiente para sentir-me seguro de que este planeta tem feito sua rota ao redor do Sol, alternando entre dia e noite, por centenas de milhões de anos; apenas o suficiente para saber que o autor “inspirado” não sabia coisa alguma sobre a história da Terra; que não entendia qualquer coisa sobre as grandes forças da natureza — sobre o vento, as ondas e o fogo —, sobre as forças que vêm destruindo e construindo, que vêm arruinando e criando através de incontáveis anos.

     E me permitam mais uma vez dizer aos ministros, que, não devem desperdiçar seu tempo me contestando. Devem contestar os geólogos. Devem negar os fatos descobertos. Devem arremessar suas maldições contra os oceanos blasfemos e investir suas cabeças contra as rochas infiéis.

     Então estudei um pouco de biologia. Apenas o suficiente para saber alguma coisa sobre as formas animais; apenas o suficiente para saber que a vida já existia quando as rochas laurencianas formaram-se; apenas o suficiente para saber que implementos de pedra — implementos forjados por mãos humanas — haviam sido encontrados misturados a ossos de animais atualmente instintos, ossos que haviam sido partidos por estes instrumentos, e que estes animais já haviam deixado de existir centenas de milhares de anos antes de Adão e Eva terem sido manufaturados.

     Então tive certeza de que o registro “inspirado” era falso, que milhões de pessoas haviam sido enganadas e que tudo que me ensinaram sobre a origem do mundo e dos homens, era uma inverdade. Percebi que o Velho Testamento era obra de homens ignorantes; que era uma mescla de verdades e falsidades, sabedoria e tolice, crueldade e bondade, filosofia e absurdidade; que continha alguns pensamentos elevados, alguma poesia, uma boa quantidade de solenidade e trivialidade, algumas orações histéricas, algumas ternas e algumas pervertidas, algumas previsões malucas, algumas delusões e alguns sonhos caóticos.

     É evidente que os teólogos combateram os fatos descobertos pelos geólogos, pelos cientistas, buscando sustentar a veracidade das Sagradas Escrituras. Pegaram equivocadamente os ossos de um mastodonte, pensando serem humanos, e com eles orgulhosamente provaram que “naquele tempo havia gigantes sobre a terra”.² Justificaram a existência dos fósseis dizendo que Deus havia os criado para testar nossa fé ou que o Demônio havia imitado a obra do Criador.

     Contestaram os geólogos dizendo que os “dias” no Gênesis eram longos períodos de tempo e que, afinal, o dilúvio talvez poderia ter sido um fenômeno local. Disseram aos astrônomos que o Sol e Lua foram apenas aparentemente parados, não literalmente; que a aparência foi produzida pela reflexão e refração da luz.

     Justificaram a escravidão, a poligamia, os roubos e os assassinatos sancionados no Velho Testamento dizendo que o povo estava tão degradado, que Jeová foi forçado a amoldar-se à sua ignorância e aos seus preconceitos.

     O clero tentou de todo modo eludir os fatos, evitar a verdade, para preservar a crença.

     A principio, simplesmente negaram os fatos; em seguida os banalizaram; depois os harmonizaram; e finalmente negaram tê-los negado. Então mudaram o significado do livro “inspirado” a fim de torná-lo compatível aos fatos. Primeiro disseram que se os fatos, conforme alegados, eram verdadeiros, então a Bíblia era falsa e o próprio cristianismo uma superstição. Posteriormente disseram que os fatos, conforme alegados, eram verdadeiros, e que estabeleciam acima de quaisquer dúvidas a inspiração da Bíblia e a origem divina da religião ortodoxa.

     Tudo que não puderam driblar, engoliram. Tudo que não puderam engolir, driblaram.

     Desisti do Velho Testamento devido aos seus erros, seus absurdos, sua ignorância e sua crueldade. Desisti no Novo Testamento porque asseverava a veracidade do Velho; desisti dele por causa de seus milagres, de suas contradições; desisti porque Cristo e seus discípulos acreditavam na existência de demônios — os expulsavam das pessoas e animais, conversavam e faziam acordos com eles.

     Somente isso basta. Sabemos, se é que sabemos alguma coisa, que demônios não existem, que Cristo nunca os expulsou e que, se fingiu tê-lo feito, era ignorante, desonesto ou maluco.

     Essas histórias sobre demônios demonstram a origem humana e ignorante do Novo Testamento. Desisti do Novo Testamento porque recompensa a credulidade e amaldiçoa os homens corajosos e honestos, porque ensina o horror infinito da dor eterna.

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Por Que Sou Agnóstico? — Parte V

Por Que Sou Agnóstico? — Parte III